Escrito por Isabella Melo, Psicóloga clínica
Luto e Melancolia (1917): a Perda do Objeto Freud nos apresenta concepções fundamentais acerca dos processos psíquicos e como tais conceitos aqui estabelecidos, afetam a nossa vida e as relações que nos permeiam ao longo da nossa constituição como sujeitos. Para definir a formação da melancolia, o autor se encarrega de explicar, a priori, um fenômeno distinto, porém semelhante: o luto. Partindo do seu pressuposto (Freud, 1917/2013), o luto se caracteriza pela perda de uma pessoa amada, como também pela perda de objetos, liberdade, ideais e crenças.
Nele, não podemos considerar um estado psíquico patológico ou encaminhar o sujeito que passa pelo processo de luto para um tratamento a fim de evitar o sofrimento da perda, uma vez que este processo se faz necessário para a reconstituição psíquica do sujeito. No luto profundo, consequente às perdas, o sujeito se afasta das atividades cotidianas que o faziam lembrar do objeto no qual não está mais presente. Há uma perda de interesse pelo mundo externo, o sentimento doloroso passa a se inserir no sujeito e a capacidade de encontrar um outro objeto amado é prejudicado devido a inibição que é exclusiva no processo de luto, e como vimos anteriormente, Freud nos diz: “O notável é que esse doloroso desprazer nos parece natural. Mas de fato, uma vez concluído o trabalho de luto, o ego fica novamente livre e desinibido” (Freud, 1917/2013, p. 29).
No processo de luto toda a energia pulsional direcionada ao objeto é retirada de forma sucessiva. No entanto, essa energia superinvestida no outro ocorre de forma intensa, por consequência, é gerado uma extrema dificuldade para o sujeito superar a perda, mesmo que ele tenha em vista uma substituição do objeto amado. O desejo em ter de volta o objeto, pode ocasionar ao sujeito um afastamento da realidade. Embora seja um processo que exige tempo e abandono do investimento libidinal, é necessário que ele perpasse por este processo de luto de forma natural, até que o desligamento da libido seja feito. (Freud, 1917/2013).
Embora a retirada de investimento libidinal ocorra, no luto o objeto nunca é perdido, as representações do objeto permanecem no sujeito ao longo de sua vida, as lembranças do que foi perdido sempre retornam e, consequentemente, esse objeto perdido permanece inscrito no aparelho psíquico do enlutado. As características e aspectos do objeto sempre são recordadas, o sujeito resiste a essa perda e o trabalho do luto, por sua vez, consiste justamente no desinvestimento desse excesso de libido objetal conforme nos aponta Freud: “a prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e agora exige que toda a libido seja retirada de suas ligações com esse objeto” (Freud, 1917/2013, p. 29).
No processo melancólico também ocorre um estado profundo de dor, desligamento do mundo externo, desinteresse pelas atividades que antes eram significantes para o sujeito e a incapacidade de amar devido à perda objetal. Sobretudo, no processo melancólico, ocorrem as autorrecriminações voltadas ao Eu e a perda objetal ocorre de uma forma mais idealizada, o sujeito sabe quem perdeu, mas não sabe exatamente o que perdeu no objeto conforme o autor nos mostra: “Não podemos discernir com clareza o que se perdeu e com razão podemos supor que o doente também não é capaz de compreender conscientemente o que ele perdeu” (Freud, 1917/2013,p. 29).
No luto, podemos observar o empobrecimento do mundo externo. Na melancolia, o Eu se torna vazio e empobrecido. O amor próprio do melancólico se torna extremamente comprometido e debilitado decorrente às suas autocríticas e sentimento de fraqueza. Prosseguindo com a sua análise, Freud (1917/2013) discorre:
"O doente nos descreve o seu ego como indigno, incapaz e moralmente desprezível; ele se recrimina, se insulta e espera ser rejeitado e castigado. Humilha-se perante os demais e tem pena dos seus por estarem eles ligados a uma pessoa tão indigna . . . O quadro desse delírio de inferioridade – predominantemente moral – se completa com insônia, recusa de alimento e uma superação – extremamente notável do ponto de vista psicológico – da pulsão que compele todo ser vivo a se apegar à vida (p. 30)."
Nesse sentido, o autor descreve um sujeito que se coloca em condições inconsistentes e se recusa em receber do objeto amado sentimentos afetuosos devido ao seu Eu fragilizado e, a partir de suas autoexigências morais, o sujeito se torna incapaz de usufruir de trocas afetivas tornando-se um sujeito dotado de sofrimento psíquico. Além das características descritas, o melancólico não sente vergonha alguma em expor as suas queixas, elas, por sua vez, são consideradas prazerosas e ocorrem de forma que o sujeito sinta satisfação ao compartilhar fracassos contra o seu próprio Eu.
A partir dos insultos que o melancólico atribui a si, Freud (1917/2013) acrescenta que tais ofensas sobrevêm de estados melancólicos, diferente de um sujeito, por exemplo, livre e desempedido desse quadro psiconeurótico. Diante disso, Freud nos traz a seguinte reflexão: “talvez a nosso ver ele tenha se aproximado bastante do autoconhecimento e nos perguntamos por que é preciso adoecer para chegar a uma verdade como essa” (p. 30). As autorecriminações do sujeito não são, via de regra, condizentes com a realidade. Contudo, “o importante é que ele está fazendo uma descrição correta de sua situação psicológica” (p. 31).
O melancólico se torna um sujeito vulnerável devido a “ofensa real ou decepção por parte da pessoa amada” (Freud, 1917/2013, p.32) e quando o objeto é perdido, ocorre a retirada da libido, não para um novo objeto, mas toda a revolta e ofensa voltam-se contra o próprio Ego em forma de identificação com o objeto que uma vez fora abandonado. A libido é retirada do objeto e todo o investimento pulsional, queixas e insatisfações do sujeito direcionadas ao mundo externo, passam a fazer parte do seu próprio Eu e “a sombra do objeto recai” (p. 56) sobre ele em forma de melancolia:
"Os motivos que ocasionam a melancolia ultrapassam na maioria das vezes o claro acontecimento da perda por morte e abrangem todas as situações de ofensa, desprezo e decepção através das quais pode penetrar na relação uma oposição de amor e ódio ou pode ser reforçada uma ambivalência já existente (p.33). De acordo com a observação de Otto Rank (como citado em Freud, 1917/2013), a escolha de objeto ocorre a partir da identificação narcísica de origem primária no qual o sujeito começa a desenvolver sentimentos de ambivalência pelo objeto amado na fase oral do desenvolvimento. Neste período inicial, o objeto é desejado e ao mesmo tempo odiado. O sentimento de ódio por sua vez, “entra em ação nesse objeto substitutivo, insultando-o, humilhando-o, fazendo-o sofrer e ganhando nesse sofrimento uma satisfação sádica” (p.33)."
Tal processo de identificação também ocorre através das neuroses de transferência, mais especificamente na histeria. Nela, o investimento libidinal ocorre de modo mais persistente, sendo ele considerado uma das formas de expressar amor pelo objeto. Na identificação narcísica, ocorre o desinvestimento libidinal do objeto no âmbito de satisfazer suas pulsões em si mesmo de forma mais arcaica, conforme descrito no tópico anterior que se aprofunda no texto Introdução ao Narcisismo.
No contexto melancólico, a identificação narcísica permite que o objeto perdido permaneça inscrito no psíquico devido ao amor narcísico que passou a ser investido no próprio sujeito. Nesse sentido, o sujeito se torna o seu próprio objeto de amor e a libido que uma vez estava superinvestida no objeto, passa a ser investida no próprio Eu. A imagem do objeto na identificação objetal é o próprio Eu, o sujeito não percebe o outro mas nele identifica seus próprios fragmentos — uma tentativa de manter em fantasia a completude narcísica e a não destruição do Eu devido a perda do objeto (Freud, 1917/2013). Para Freud (1914/2010), a problemática da identificação narcísica não ocorre pela falta, mas pela presença marcante do objeto no qual o sujeito não consegue se distanciar.
Na medida que o sujeito não pode odiar o objeto diretamente, ele se auto-recrimina, ele tenta de algum modo apagar o objeto instaurado no Eu atacando a si mesmo, da mesma forma que o bebê não tem condições de agredir o adulto, ele agride a si mesmo. A partir desse período primordial, o Eu se divide, uma parte fica identificada no objeto e outra parte no próprio Eu, uma vez que, o sujeito está absolutamente identificado narcisicamente, desta forma, encontramos as condições iniciais do processo melancólico.
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